Entrevista: Camila Thiesen, idealizadora do projeto “habitar a quarentena”
Camila Thiesen é arquiteta e urbanista, sócia fundadora do Metropolitano Arquitetos e, mais recentemente, a cabeça por trás do projeto “habitar a quarentena”, que, além de um registro do momento atual de isolamento social, é também uma pesquisa de comportamento. “Com o início da quarentena, as obras e os serviços considerados não essenciais foram paralisados. Assim, com menos horas de trabalho demandadas, mesmo me adaptando à nova rotina, a cabeça não sossegava. Com essa inquietação, me perguntei como as pessoas estariam habitando nesse momento tão singular, coabitando de maneira tão intensa, adaptando suas atividades ao lar, e ainda, se esse período influenciaria na arquitetura daqui pra frente”, explica.
O perfil no Instagram – que reúne relatos e fotos de pessoas trazendo diferentes experiências sobre o morar em tempos de distanciamento – “é um rico exercício de reflexão sobre os espaços que ocupamos, como ocupamos e com quem ocupamos”, reconhece Camila. Em entrevista exclusiva à TGD, ela compartilha um pouco de suas impressões do que tem acompanhado atrás dos relatos, a adaptação do trabalhar ao ambiente de casa e, ainda que seja cedo, aponta alguns caminhos do que pode ser o futuro pós-pandemia em arquitetura.
O que tem te chamado a atenção nos relatos que recebes via “habitar a quarentena”? Como as pessoas têm vivido este momento de distanciamento?
Cada pessoa tem uma maneira diferente de contar o seu momento e, apesar disso e de serem distintas vivências, todas manifestam gratidão por poderem estar em casa. É interessante perceber como somos capazes de nos adaptarmos a diferentes situações, quando se tem solidariedade e união. Vários relatos apresentam semelhanças, mas cada casa é um caso. O aspecto mais comentado é a adaptação do trabalho profissional em casa – e como isso se dá – seguido de outras atividades trazidas da rua, como por exemplo, terapia e exercícios físicos.
Em relação aos fatores da casa, os colaboradores, agora, reconhecem como a luz e a ventilação são importantes no lar, do mesmo modo quanto à possibilidade de olhar para fora – seja através das janelas ou de sacadas – e de ter um certo “isolamento”, ainda que mínimo, para desenvolver as tarefas que exigem mais privacidade. A necessidade de ter um vestíbulo e uma lavanderia maior foi apontada, assim como alguns colaboradores já sinalizam, nos seus relatos, intenções de modificações na casa – desde a troca do sofá para um mais confortável até alterações nos ambientes para criação de escritório fechado.
A partir das vivências dos convidados, que novos significados percebes que a casa ganhou?
A casa agora é vista como refúgio, como um porto seguro. A casa, que antes era o lugar de morar, agora passou a ser um espaço multiuso. Um lugar que foi ressignificado ao atender novas demandas, onde se misturam as atividades, as relações, os sentimentos, as memórias e novas percepções com muita intensidade.
O home office ganhou espaço?
Trazer o trabalho para casa foi a grande mudança nos lares e rotinas das famílias. Mesmo nas casas onde já havia um espaço destinado a trabalhar, se fez a necessidade de ter dois. Várias pessoas relatam que tinham um ambiente para home office, mas que ele servia para pouca permanência, ou seja, algumas horas para conferência de e-mails e trabalhos rápidos – muitas vezes nem era usado de fato, e servia como apoio de livros e “bagunça”. Agora, com a necessidade de ser usado por longas horas, as pessoas perceberam que o espaço não é o ideal, seja porque não há luz suficiente, ou acústica e privacidade não são suficientes, ou ainda, que a cadeira não é confortável. As estações de trabalho na maioria das vezes foram adaptadas nas mesas de jantar – mesmo para aqueles que já tinham um home office, se mudar para a mesa de jantar foi uma opção. Os moradores se dividem na mesma mesa de jantar, ou um na mesa de jantar e o outro no escritório ou no quarto e por aí vai. São inúmeras situações e certamente essa atividade trazida de fora foi a que mais exigiu adaptação, organização e paciência.
As desvantagens do trabalho em casa, sem um espaço adequado para tal, na maioria das vezes se apresenta por falta de conforto, de iluminação adequada, de privacidade (quando há outros moradores na mesma casa), de foco. Além disso, estar em casa e conciliar o trabalho e os filhos, principalmente os pequenos, tem se mostrado uma tarefa difícil, porque a maioria das crianças associa o fato dos pais estarem em casa com um tempo livre, em que eles ganhariam atenção – e não tem sido bem assim. Muitos colaboradores mencionam isso e relatam que há um certo revezamento entre a rotina de trabalho do casal para que na hora que um esteja trabalhando o outro possa dar atenção ao filho e vice-versa.
As vantagens são muitas, tanto quanto as desvantagens, e talvez se tornem memórias muito boas para o futuro. Os deslocamentos não existem mais e foram substituídos por mais tempo livre, seja para cozinhar, para brincar com os filhos, para faxinar ou simplesmente para estar. Acredito que muitos perceberam que conseguimos economizar tempo e deslocamento com reuniões, que agora são feitas virtualmente, e que várias coisas se resolvem redigindo um bom e-mail. Claro que o excesso de exposição nas videochamadas já se demonstra cansativo; muitos se preocupam em ter que organizar o cenário de fundo para elas.
É difícil fazer qualquer previsão, mas o que o Habitar a Quarentena está apontando como futuro?
Ainda é cedo para chegar a conclusões, porém passei a achar que as pessoas começaram a perceber que morar bem é uma questão de qualidade de vida e que a adaptabilidade na moradia é um aspecto essencial. Assim como nós devemos ser resilientes quanto a diferentes situações, as moradias necessitarão nos acompanhar nesse processo. Cada vez mais, será necessário saber ler e interpretar a rotina da família para situações usuais e atípicas (só nos basta saber o que será o “novo normal” daqui pra frente) dentro de casa para poder prever soluções pros distintos cenários possíveis. Acredito que a maioria das pessoas passará a ser preocupar mais com o bem estar da casa e seus ocupantes, tendo maior atenção para questões de ventilação e iluminação natural, optando por materiais e revestimentos fáceis de limpar, preferindo ambientes mais amplos com menos móveis e planejando os espaços de maneira a permitirem uma certa reversibilidade. Não sabemos se situações como a atual irão se repetir, provavelmente tenhamos outras pandemias no futuro e os novos comportamentos adquiridos podem virar novos hábitos e refletir nos espaços de casa e da cidade. É possível que as mudanças ocorram além dos lares, como em ambientes corporativos e demais espaços da cidade. São inúmeros cenários possíveis.
Só para os escritórios já podemos pensar em duas hipóteses: a primeira, que as empresas podem passar a aderir ao home office para parte da equipe e com isso diminuir os espaços físicos, e aluguéis de grandes áreas ou, ao contrário, podem optar por manter a equipe toda no mesmo espaço, mas com áreas ainda maiores para reduzir o adensamento geral nos ambientes. Nas cidades, se as pessoas optarem por aderir ao home office, não ficarão mais apegadas à ideia de morar perto do trabalho para ter menos deslocamentos, vão de repente optar por morar longe da região central, em áreas menos caras e com opção de morar em casa, por exemplo, ao invés de apartamentos.
Construir acompanha o viver.
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